Notícias do Tocantins - "A gente é a dona da casa quando o patrão sai, mas eles não veem isso. Querem que a gente lave, e, cozinhe, cuide dos filhos e ainda pagam uma merreca." O desabafo é de Maria Francisca da Natividade Francisca Barbosa, moradora do Lago Sul, em Palmas. 2c1c3f
Com 47 anos de idade e mais de três décadas de experiência como trabalhadora doméstica, Maria Francisca resume a realidade de milhares de mulheres brasileiras que ainda enfrentam precariedade, desvalorização e informalidade — mesmo após dez anos da promulgação da Lei Complementar 150/2015, conhecida como a Lei das Domésticas.
Sancionada em 1º de junho de 2015, a norma estabeleceu uma série de direitos trabalhistas para a categoria: jornada de trabalho máxima de 44 horas semanais, pagamento de hora extra, recolhimento obrigatório do FGTS, adicional noturno, salário-família, entre outros. No entanto, a informalidade ainda atinge mais de 75% das trabalhadoras domésticas no Brasil, conforme dados recentes do IBGE.
Direitos no papel, rotina de exploração
Maria Francisca começou a trabalhar nas casas de outras famílias aos 12 anos. Foi apenas aos 28 que teve sua primeira carteira assinada. De lá para cá, acumulou experiências boas, como com uma ex-patroa que virou amiga, mas também viveu momentos marcados por abuso de poder e desrespeito.
“Tive uma patroa que me explorava de um jeito muito desrespeitoso. Eu saía magoada, cansada. A gente tem que conhecer os direitos do patrão e os nossos. Não é só a carteira, é respeitar também”, conta.
Atualmente, ela atua como diarista e se queixa dos valores pagos. Segundo Maria, muitas famílias querem pagar menos da metade do valor justo pelas diárias, propondo R$ 130 por jornadas que envolvem múltiplas tarefas e pouca estrutura.
“A diária certa seria R$ 280, mas eles choram, querem pagar R$ 140. E ainda botam roupa para lavar, para ar e às vezes cozinhar. Isso é exploração, não é trabalho digno”, diz.
A lei não chegou para todas
Embora a Lei das Domésticas tenha sido uma conquista histórica, considerada um dos maiores avanços nas relações trabalhistas da história recente do país, ela não alcançou a totalidade das trabalhadoras, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, onde a cultura da informalidade é mais acentuada e a fiscalização mais frágil.
No Tocantins, a situação segue a tendência nacional: há milhares de domésticas sem registro, sem o ao INSS, sem estabilidade, sem garantias básicas. A maioria são mulheres negras, de baixa renda, que sustentam suas famílias com esse trabalho invisibilizado.
“Somos invisíveis quando não convém”
Além da questão salarial, Maria Francisca destaca o peso simbólico do desrespeito:
“Quando o patrão sai, é a gente que segura a casa. A limpeza, o cuidado, tudo depende da doméstica. Só que ninguém valoriza. Querem a casa limpa, mas não querem pagar o justo. Não somos empregadas, somos donas do cuidado.”
A fala remete ao debate estrutural sobre o racismo e o machismo no mercado de trabalho doméstico, uma herança histórica do período escravocrata que ainda influencia práticas sociais no país.
Dados e contexto sobre o trabalho doméstico no Brasil
Lei Complementar nº 150/2015: Completou 10 anos em 1º de junho de 2025.
Número de trabalhadores domésticos: Em 2024, o Brasil contava com aproximadamente 6 milhões de trabalhadores domésticos.
Formalização: Apenas 24,4% desses trabalhadores tinham carteira assinada em 2024.
Perfil demográfico: A categoria é composta majoritariamente por mulheres (aproximadamente 90%), das quais 66% são negras.
Remuneração: O rendimento médio das trabalhadoras domésticas é inferior ao salário mínimo vigente, sendo ainda menor entre as mulheres negras.
A voz de quem faz o Brasil andar
A fala final de Maria Francisca reforça a necessidade de reconhecimento:
“Se quiser um funcionário exemplar, tem que tratar com respeito. Ter amizade, convivência e pagar o justo. A gente não é robô, é gente. E cuida da casa dos outros como se fosse a nossa.”
Saiba mais: Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (nº 189)